Vanessa da Mata retoma crônica brasileira em novo álbum: ‘Sou contadora de histórias’
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, cantora refletiu sobre a própria carreira, falou sobre o futuro e contou detalhes do novo disco, Todas Elas
Por Ademir Correa e Rodrigo Tammaro
Publicado em 23/05/2025, às 17h45
No caso de Vanessa da Mata, é certeiro dizer que a força da arte nunca seca. Mais de duas décadas após encantar o Brasil ao compor com Chico César e ser interpretada por Maria Bethânia, a criatividade da cantora de Alto Garças, no Mato Grosso, continua fluindo no álbum Todas Elas, lançado em maio. Ela dá novos contornos ao papel de cronista do país. Vanessa canta sobre assuntos políticos e sociais importantes que, além de tudo, calharam com o momento emocional que ela vive.
Multifacetada, a artista escancara as várias mulheres que compõem a própria identidade. Logo na abertura, “Maria Sem Vergonha” manifesta a rebeldia contra o aprisionamento feminino. “Esperança” traz uma mulher madura que reconhece o amor como exercício, não como posse.
A crítica melódica lança olhares para a intolerância religiosa em “Eu Te Apoio em Sua Fé”, criada com base em uma notícia de telejornal. Há ainda espaço para estranheza e desconforto na pouco convencional “Demorou”, um dueto com João Gomes; O amor suave em “Troco Tudo”, feita em parceria com Jota.pê; e “Um Passeio Com Robert Glasper Pelo Brasil”, que mergulha pelos sons nacionais ao lado do pianista americano Robert Glasper.
Todas Elas também inaugura a Vanessa da Mata pós-Clara Nunes – A Tal Guerreira, espetáculo no qual ela revisita a trajetória de uma das maiores vozes da música brasileira. “Clara Nunes me ensinou a ser mais profissional, ter mais ambição em relação ao meu potencial vocal, meu potencial de espetáculo. De trazer essa interpretação e essa dramaticidade”, disse em entrevista à Rolling Stone Brasil.
É essa dramaticidade que a artista promete para a turnê do novo álbum, que começa neste sábado, 24, no Rio de Janeiro e conta com uma passagem pelo Palco Aquarela do festival João Rock, em Ribeirão Preto no dia 14 de junho. Isso, é claro, sem deixar a música em segundo plano: “Tenho uma fome muito grande dessa coisa mais manual, mais brasileira. De oferecer as letras e as harmonias para que as pessoas que estão ali possam buscar as próprias experiências. Uma necessidade de ter mais envolvimento musical.”
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Ela se diz cansada, mas a Vanessa da Mata que visitou os estúdios da Rolling Stone Brasil parece tão viva quanto a que escreveu "A Força Que Nunca Seca" no final dos anos 1990. Enquanto reflete sobre o futuro — ela se vê como uma “velhinha safada” —, sobre o cenário da música brasileira contemporânea e sobre a própria carreira, a cantora comprova que transformar sofrimento em poesia é o caminho para a tranquilidade artística.
Leia a entrevista na íntegra a seguir:
Rolling Stone Brasil: Todas Elas é um disco que fala sobre as várias mulheres que você é. Quais mulheres são essas?
Vanessa da Mata: Todos nós temos camadas de personalidades. Lógico que não estou falando de esquizofrenia, mas de possibilidades, momentos, dias e hormônios diferentes. Os meninos também. Maneiras diferentes de resolver problemas dependendo da situação. Então, sempre acho que não estar permanentemente de um jeito é a melhor forma de você lidar com a vida, de aprender e dar uma chance a si mesmo para amadurecer.
Você diria que esse foi um álbum de redescoberta?
Eu sempre tive flexibilidade, sou uma pessoa muito livre. Muito, além do normal. Livre no sentido de não querer entrar em nada que me oprima, que me encarcere de alguma maneira. Sou uma contadora de histórias, essas mulheres sempre estiveram comigo. Mas nesse disco, acho que estão muito mais presentes, escancaradas, mais femininas e feministas, também mais menininhas. Tem várias versões românticas, outras percebendo mais um narcisismo. Essas falhas humanas são muito percebidas por essas mulheres todas.
Como é lançar um disco após o espetáculo Clara Nunes – A Tal Guerreira, no qual você interpretou a cantora no teatro?
Achei que eu ia tirar férias, mas não consigo. Já tentei de todas as maneiras e sempre invento alguma coisa nova. Na pandemia de Covid-19, fiz uma loja de móveis antigos assinados, das décadas de 1950 a 1960, e comecei a pintar quadros enormes. Não sei se é uma fuga ou outra coisa, mas não consigo parar.
Mas Clara me ensinou muito a cantar. Tive um preparador vocal, Rafa Miranda, todos os dias. Eu já tinha feito fonoaudiologia, mas nunca aula de canto. Tinha um preconceito enorme por achar que se eu fizesse muita aula, ficaria técnica de mais e deixaria a emoção de lado. Ao contrário, o emocional pode vir, mas eu consigo coordenar a voz e isso me deu uma liberdade maior ainda.
Esse menor músculo do nosso corpo, chamado cordas vocais, é muito sensível. Então se você exercita todos os dias, você mantém ele no lugar onde quer. Você joga uma nota para cima, ele vai onde você quer. Se tenta colocar ele mais forte cantando um rock ‘n’ roll, ele vem mais forte sem te machucar. Se quer algo mais sussurrado, vai sussurrar com a nota certa.
Clara me ensinou isso e me colocou em um repertório maravilhoso. Quando saí, parei e começou a música. Eu acordava pensando em música, ia dormir com outra. Tanto que a gente fez esse disco em quatro dias. O resto foram ajustes, mas ele estava semi-pronto em quatro dias, o que é um milagre hoje em dia.
Foi um dos seus trabalhos mais rápidos para fazer?
Mais rápidos, mais espontâneos, mas também mais certeiros. Mesmo tão rápido, ele tinha um plano, tinha essas meninas na minha cabeça, os assuntos que eu queria tratar.
Por exemplo, “Eu Te Apoio em Sua Fé”, eu anotei o assunto e fiquei dias com ele na cabeça depois de uma meteria de telejornal sobre uma facção que entrou em um terreiro de Candomblé e mandou o babalorixá quebrar o terreiro inteiro. Eu olhei aquela tristeza, mas com uma resiliência enorme e uma camiseta de Jesus Cristo. E os caras que estavam quebrando diziam que era em nome de Jesus Cristo. Que contraste. Absurdo, tristeza, mas, ao mesmo tempo, maravilhoso, porque mostra o ser humano na sua loucura. Uma arrogância em nome de Jesus Cristo e o outro ali com a camiseta que era a guia dele naquele momento. Eu não resisti, fiz essa música, “Eu Te Apoio em Sua Fé”, que eu gostaria que chegasse nesse homem em algum momento.
Aí tem “Ciranda”, uma música que fala de uma mulher que veio de um lugar onde a sede é pior do que a fome. Ela cuida de um neném, tem essa coisa da mãe solo no Brasil. A gente vem de um lugar que é uma sequência da escravização das pessoas, onde o homem era colocado sempre no papel de fazedor de filho. Fazia o filho e era mandado para outro lugar. Então as mulheres estão sempre cuidando sozinhas de seus filhos.
São vários assuntos e, ao mesmo tempo, assuntos políticos e sociais importantes que vieram a calhar para mim emocionalmente.
Você sempre teve um olhar social, assim como Clara Nunes. O espetáculo intensificou isso?
Sempre fiz, desde o primeiro disco. Tinha a música “Eu Não Tenho” na qual eu cantava “Eu não tenho chão/Eu não tenho casa/Eu não tenho pão/Estou vendendo as asas que possuo/Por não ter mais nada”. Vendia a inocência porque a fome corrompia.
Mas acho que não dá para passar por Clara, foi um divisor de águas para o meu lado artístico. Ainda mais naquele espetáculo, com aquele repertório, a incumbência de fazer tudo de uma maneira muito profissional. Estar naquela época, naquela presença, naquela mulher e com aquele histórico.
Temos várias coincidências: é uma mulher que tinha um teatro — eu tenho uma casa de show, a Casa Natura Musical; uma mulher que veio do interior, que tinha a catira congada, e eu a folia de reis, o Cururu Siriri; uma mulher de rios, eu também.
Uma mulher que também era política, que não tinha medo de falar das coisas, como você. E que sofreu as consequências dessa coragem…
E em um momento muito crucial, difícil. Uma mulher muito dolorida com todos os homens que passaram na vida dela, e isso ainda acontece muito hoje. A gente procura essa coisa de romances que não existem. Mas ela me ensinou muito. Me ensina muito.
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Todas Elas tem uma perspectiva feminina, mas as três colaborações no disco são masculinas: Jota.pê, Robert Glasper e João Gomes. Como esses universos se complementam?
Com o João, eu já estava com a música “Demorou” pronta, gostei dos agudos e falei: “Gente, preciso de um barítono aqui, a voz de um velhinho. Quem eu vou chamar? O João Gomes”. A banda do João chama ele de voz de velho. Aquele menino magrelinho —ele falou que agora tem uma barriguinha, mas continua magrelinho— com aquela voz é muito raro. E essa está entre as músicas mais tocadas do disco até agora.
O Jota.pê, antes de gravar o primeiro disco, a gente já conversava muito. Eu gostava muito dele como artista e antes de ele assinar contrato com gravadora, veio falar comigo. Me perguntou o que fazer e eu falei: “Olha, existem algumas armadilhas, tal coisa pode acontecer, então deixa tudo muito claro no contrato”. A gente conversou bastante. Eu estava quase fechando o disco e no último dia enviei uma mensagem: "Me manda alguma coisa, cria uma melodia aí e me manda". Ele fez. Imediatamente eu gravei o restante, no celular mesmo, devolvi para ele e a gente se encontrou no outro dia para fazer a letra. Foi uma música muito fluida, daquelas que nascem sem dificuldades, e eu acho linda.
E com o Robert Glasper foi muito engraçado. Há uns 10 anos eu estava em um café de Nova York escrevendo e começou a tocar uma música que me chamou atenção. Comecei a pesquisar e era do Robert, não parei de ouvir. Esse cara veio aqui no ano passado, demorou um pouco para as pessoas saberem quem ele era. Fui ao camarim, conversei com ele, a gente trocou telefone e um dia eu falei: “Estou precisando de harmonias, de alguma levada que você tiver. Me manda a levada que eu faço fácil.” Ele mandou três e eu fiz a melodia e a letra em cima. A música é maravilhosa, é engraçada, parece uma coisa da década de 1980 ou final de 1970, quando as pessoas falavam muito do Brasil nas canções, coisa que a gente não faz mais. Então eu quis entrar nessa, mas falando dos sons do Brasil, do interior, do Brasil profundo. Aí surge essa música que é um passeio com Robert Glasper pelo Brasil.
Por falar em parceiros homens, Mick Jagger, dos Rolling Stones é um fã seu e assistiu à sua apresentação em Londres. Como foi isso?
Pois é. Eu conheci ele há muitos anos; Paula Lavigne nos apresentou durante uma festa na casa dela. Ele me achou engraçada, sei lá o que eu disse. Falei sobre as praias do Rio que não tinham ninguém e ele gostou. Acho que percebeu que eu não ia colocar ele em uma fria.
Depois de alguns anos, a gente se falou de novo. Mostei Luiz Gonzaga para ele, e ele ama. Aí eu comentei sobre o show e falei para ele ir caso estivesse sem nada para fazer. Mick ficou no show do começo ao fim. No início ele estava embaixo, dançando com a galera. Depois subiu, porque não conseguiu dançar mais, e ficou na coxia ali. Achei maravilhoso. Ele me falou: “Cara, sou seu fã. Comecei a ouvir suas coisas, acho muito profundo, muito original. Uma mulher compositora.”
E você ouve Rolling Stones?
Ouço. Falei para ele: "Sou sua fã, mas eu devo te dizer que os meus ídolos são brasileiros, eu não conheço tanto". Ele falou: "Ótimo, melhor". Normal, né? Eu cresci ouvindo o Chico Buarque, depois fui ouvir tudo o que chegava de Milton Nascimento, as coisas que apareciam nas novelas. Porque no Mato Grosso daquela época, a gente só conhecia por causa disso.
Mas eu fiquei chocada com a presença dele, os meninos mal conseguiam tocar direito. Loucura. Ele é impressionante, cheio de vida. Eu não quero assistir a show nenhum. Já estou cansada. Alguém me chama e eu respondo igual ao Tom Jobim. Ele dizia: "Eu cobro 100 mil para fazer um show, 200 mil para assistir". Tom Jobim era terrível.
Mesmo cansada, você se envolve muito com o próprio trabalho…
Não tem como não me envolver. Meu filho veio junto aqui na Rolling Stone Brasil para me ver. Depois de crescido, porque antes eu parei as minhas turnês, parei várias coisas para poder ficar com eles. A gente era muito presente. Agora a gente está ensaiando no Rio, vai estrear lá, a banda está lá.
Mas não tem como, a vocação é muito forte, sempre foi. Eu saí muito cedo de casa, com 14 anos, deixando para trás a pessoa que eu mais amava na vida, minha avó, sabendo do medo, da possibilidade de ela ir embora rápido. Era um sofrimento devastador, mas foi muito mais forte que eu. Não tinha como competir.
Então é um envolvimento por vocação, e não por uma necessidade na indústria musical?
Industrial eu não estaria nunca. Essa necessidade industrial é muito perigosa. Dede o primeiro disco eu cheguei com o cassetete na mesa dizendo: “Minhas músicas são assim, meu cabelo é assim”. Tinha uma gravadora em São Paulo que queria que eu alisasse o cabelo, usasse minissaia. Uma gravadora que dizia que tinha mais dinheiro para figurino do que para videoclipe. Parti para outra. Falei: “Então não é uma gravadora, é uma marca de roupa”. Escolhi entrar na minha gravadora da época, a Sony, porque eles me respeitavam muito. Eu já cheguei com um estilo, já cheguei com umas músicas que eu fazia.
E chegou com Chico César e Maria Bethânia cantando suas músicas.
Tinham muitos projetos na época em que eles lançavam as mulheres com os caras que eles queriam. “Está faltando tal tipo de música, vamos botar umas meninas cantando isso.” Até hoje esses projetos existem. Mas eu já tinha tudo, já sabia o que queria e era muito dona do meu estilo musical.
Você continua sendo dona de si em Todas Elas.
Continua fluindo, o que para mim é muito importante. Vejo muitos amigos que não fazem mais álbuns tão vivos quanto os primeiros, isso é angustiante. Você vê a pessoa lançando um super trabalho, uma grana e um tempo gastos, e o disco não é vivo, não tem energia, sabor, nenhuma música te envolve.
Acho que essa fluidez minha enquanto compositora aconteceu desde o primeiro disco, o que é muito raro. Ela é muito angustiada, viva, profunda. É uma força que nunca seca. Mesmo.
A música te tirou de casa, te levou para o mundo, consolidou sua carreira. O que ela representa para você hoje?
Eu tinha três anos quando meu pai estava me gravando e perguntou o que eu queria ser quando crescer. Eu disse: "Quero cantar". Ele respondeu: "Não, você vai ser médica". Eu insistia: "Não, eu vou cantar". Meu pai era muito bravo. Com sete anos eu dizia que eu ia cantar para milhares de pessoas. E com 10, 12 anos, eu dizia que eu ia cantar para o mundo. Então, não sei se era uma previsão ou coisa da minha cabeça, uma teimosia que botei ali para que meu futuro desse certo. Mas fui criada por uma avó que cantava o tempo todo. E a voz lindíssima. Minha mãe também tem uma voz cristalina, eu já tentei várias vezes levar ela para gravar, mas ela tem uma timidez horrorosa. Fico pensando como vou fazer para gravar ela escondido.
A música tomou conta de mim e me deu tudo que eu sou e que eu tenho hoje. De um jeito que todos os meus sofrimentos, todas as coisas que passei, eu transformei em uma construção. E foi muito sábio do meu organismo transformar isso numa função de vida. Depois que aprendi a fazer isso, meu sofrimento ficou bonito. Meu sofrimento se tornou uma poesia.
E quando foi que você aprendeu a fazer isso?
A música é muito doida. A voz é invisível, mas ela te dá tudo; ou ela tira tudo. Assista a um filme de terror sem música e você vai dar risada.
Foi no primeiro disco, com as músicas que eu compunha sozinha, tudo feito artesanalmente e aquilo passou para os músicos e virou um acontecimento. Porque a música virou um Ser. Naquela época, ainda eram discos, algo palpável. Achei aquilo tão milagroso, tão divino, mágico. E outra delícia é o show, ficar diante de tanta gente que canta as canções como se fossem deles, porque o momento é deles. Nada te pertence. Acho isso muito bonito.
Qual foi seu maior aprendizado com Todas Elas?
Ter uma garantia de que eu sou uma boa produtora; isso já é um alívio. Eu procurei dois produtores antes, o Mário Caldato e o Gustavo Ruiz. Os dois não tinham tempo. Aí minha empresária falou: “Vanessa, dos seus últimos discos, os que tiveram os melhores resultados foram os que você produziu. Se estiver se sentindo bem para isso, produza de novo”. Eu pensei que era isso mesmo. Se eu teria que passar tudo o que eu queria para um produtor, por que não fazer eu mesma? Vou ter os músicos que eu confio e que estão comigo há um tempo, e todo mundo se respeitando. Vai ter um momento coletivo de criar os arranjos e um momento das minhas frases naquela canção. Fiz e foi fluido, delicioso. São 14 músicas e tem duas aí que eu acho que podem ser melhoradas e talvez lançadas mais para frente.
Pintora, atriz, compostora, produtora, cantora, mãe. O que mais?
Não tenho tempo para mais nada [risos].
Mas você está abrindo vários caminhos…
Verdade. E muitas vezes eu tive parceiros. Dessa vez não, foram 10 músicas sozinha e isso está aumentando cada vez mais. Mas acho que a expressão, para muita gente angustiada como eu, que não dorme, que tem muitas coisas a resolver da sua personalidade, acho que é um excelente caminho.
Essa arte de se se expressar, seja em roupa, pintura, escrita. Todo mundo deveria escrever. Todo mundo deveria fazer teatro. Meus filhos fazem e para eles é muito bom. Para a empatia, para entender a sociedade, crescer como ser humano, para o desenvolvimento intelectual. É imprescindível, necessário. Deveria ter em todas as escolas desde cedinho.
Se você pudesse dar um conselho para você mesma no início da carreira, qual seria?
“Faça exatamente o que você fez”. Porque os momentos mais tensos vieram onde eu precisava focar. Eu não aproveitei muito a minha adolescência porque eu precisava focar, não tinha para onde voltar. Se eu voltasse para o Mato Grosso naquele momento, talvez fosse infeliz para o resto da vida.
Eu era uma menina pobre. Ou focava e aprendia a compor, conhecia as pessoas certas e não faria nenhuma bobagem que me tirasse do meu rumo, como as drogas, ou eu não conseguiria. Porque eu não tinha padrinho, não tinha nada. Depois fui ter a Maria Bethânia, mas até aí eu tive que fazer “A Força Que Nunca Seca”, que é uma letra estupenda. Uma gênia que fez essa letra, uma loucura [risos]. E isso aos 21 anos. Então, se eu não focasse, não virasse as noites estudando sozinha, enquanto os meus amigos iam para o bar, beber e gandaiar, o que também é maravilhoso, eu não estaria aqui. Por isso eu falaria para fazer exatamente a mesma coisa.
Você diria que os artistas de hoje demoram mais para amadurecer?
Não. Eu acho que depende de cada um, depende do que é amadurecer para cada um, do que essa galera quer. Tem muita gente que se encontra para fazer música mais pop, para dançar, mais em função do ritmo do que qualquer outra coisa. E sexualidade que é uma coisa que vende muito, não tem jeito. Mas eu acho que depende muito do foco das pessoas.
Eu sempre quis ser MPB, sempre gostei de letra. Estou gostando de envelhecer, não de chegar aos 70 ou 80 anos porque não sei como vai ser, mas como minha cabeça está agora. Me sinto muito mais livre e menos pesada. Existia uma seriedade e um foco que me torturavam mesmo. De ter que chegar a um lugar onde eu estivesse tranquila como artista, tivesse um público que me mimetizasse e se sentisse no mesmo planeta que eu.
Hoje você está tranquila como artista?
Estou. Mas quero desenvolver mais a musicalidade, a interpretação no palco. Acho que dá para ter uma dramaticidade que hoje em dia não tem, a gente foi perdendo. Bethânia é minha madrinha musical, mas acho que ela é uma das poucas que são intérpretes mesmo. E tem cantoras de vozes super potentes que alcançam as notas sem alcançar as letras. Eu observo e me agrada, mas não percebo que a pessoa está ali, de fato, despertando nossos ouvidos. Também tem um monte de pirotecnia nos shows, isso vem e vai, mas a música fica em segundo plano, terceiro plano, você fica meio seduzido por outras coisas.
“Tenho uma fome muito grande dessa coisa mais manual, mais brasileira. De oferecer as letras e as harmonias para que as pessoas que estão ali possam buscar as próprias experiências, não serem visualmente levadas. Uma necessidade de ter mais envolvimento musical.”
Você estreia a turnê de Todas Elas no Rio de Janeiro neste dia 22 de maio e também passa pelo festival João Rock. Como estão os preparativos?
A todo o vapor. O espetáculo da Clara Nunes também me ensinou a ser mais profissional nesse sentido. Eu faço as coisas com muita facilidade, as composições, o canto. Mas Clara me ensinou a ter mais ambição em relação ao meu potencial vocal, meu potencial de espetáculo. De trazer essa interpretação e essa dramaticidade. Eu e o Jorge Farjalla estamos justamente trabalhando isso. Quero um show dramático, um show com nuances de todas essas mulheres muito bem cravadas. Sem tantos truques que façam as pessoas perderem a interpretação.
Maria Bethânia é sua madrinha musical. Mas e você, reconhece seu papel como conselheira de músicos e fãs brasileiros?
Eu tenho uma responsabilidade quando eu faço uma letra. Porque acho que as pessoas, em dados momentos, acham que tem sinais para elas. Principalmente quem está muito sensível.
Não fico pensando muito nisso, porque dá uma pirada. Faço o meu e espero que as pessoas gozem com isso. Assim como eu gozei, assim como tive esse prazer de criatividade quando vem a canção.
Como você avalia a música brasileira atualmente?
Eu tenho uma casa de show, a Casa da Natura Musical, que lança gente toda semana. E muita gente boa. Infelizmente essas pessoas não chegam numa massa maior e eu acho que existe uma necessidade de quem é mais sagaz de ter as músicas tocando o tempo todo. As pessoas deveriam procurar mais o seu leque musical. Porque ele existe, ele está aí e está cheio de gente que precisa do seu público para continuar existindo.
Assim como os antigos. Tem muita gente que tocou muita música boa e a nova geração não conhece. Outro dia o meu filho estava descobrindo Guilherme Arantes. Muito legal, o que mais tem no Brasil é música boa. E eu escuto música desde quando ganhei meu primeiro dinheirinho e pude comprar coisas da década de 1930, Orlando Silva, Silvio Caldas, enfim. Sei quanto tem música boa perambulando por aí para a gente ouvir.
Você consegue ouvir música sem pensar no trabalho? Como separar os dois momentos?
Super. Por exemplo, Orlando Silva eu fico analisando a letra. Aí você começa a viajar para os anos 30, aquele rapaz que fala sobre a menina pela qual ele se apaixonou e hoje ele está junto com os bambas, que são os caras mais fortes do samba. Que viagem maravilhosa. É uma história e tanto.
Mas a minha música eu não ouço, porque aí eu fico pensando: “Por que não tirei isso? Por que não coloquei aquilo?” Quando eu saio do disco, saio mesmo. A gente não acaba um disco, a gente abandona ele. Isso é realmente sério.
Após terminar o disco o show é outra construção…
Outra construção. Você tem que trazer para o palco as coisas que soam melhor e que talvez sejam mais apegadas, mas bonitas de acordes e tudo mais. É um trabalho completamente diferente.
Você se considera perfeccionista?
Muito mais que isso. Sou a doida virginiana. Meus cadernos têm rasuras enormes, eu refaço as letras 20 vezes.
Em “Demorou”, com o João Gomes, a gente traz uma levada de reggae com o violão ao contrário, no ritmo oposto. Até eu explicar isso, conseguir que todos entendessem, foi uma dificuldade, porque no refrão tudo se alinha. E eu comecei a escrever ela pensando nessa estranheza: “Deixa eu te dizer que eu te quero mais uma vez/Parece estranho, mas siga, não tenha pânico/Eu já te disse e repito, é tão natural/Não tenha medo, se encaixe que vai ser bom”. A melodia, com a letra e o arranjo todo, fazem muito sentido. Aí a gente entra no refrão, com o violão alinhado, e a letra começa a dizer de uma maneira confortável. Isso é muito divertido.
E olhando para o futuro, qual é a Vanessa Da Mata que você vê?
Uma velhinha safada [risos]. Uma velhinha que os meus filhos vão ficar proibindo de sair. Brincadeira. Eu sou muito séria. Tenho essa personagem engraçada que brinca o tempo todo, mas acho que se eu relaxar cada vez mais e conseguir fazer minhas músicas de uma maneira que eu goste, que me dê orgulho, assim como Todas Elas, vou continuar muito feliz. Mas vou continuar sendo essa contadora de histórias a mil por hora. É o que me move.
A gente só vai pensar na parte do “velhinha safada”, ainda mais com o seu filho junto aqui no estúdio da Rolling Stone Brasil.
Ele está acostumado [risos]. Mas é outro tipo de safada, uma safada engraçada. Meio Dercy Gonçalves, que fala tudo o que pensa e sem filtros. Acho isso fantástico.

Se você pudesse assistir ao show de qualquer artista, quem escolheria?
Tom Jobim. Eu ia grudar nele, casar com ele.
Se pudesse gravar uma música com qualquer artista, com quem seria?
Coisas simples. Mick Jagger, Chico Buarque...
Você viveu Clara Nunes no teatro. Se fosse para interpretar outra personalidade em um espetáculo, quem seria?
Maria Callas, Gal Costa… São tantas. Só não faria Yma Sumac porque não tenho aquele agudo.
Qual superpoder você teria?
Ser invisível. Comer todos os chocolates dos mercados, bisbilhotar a vida alheia, escrever milhares de coisas. E influenciar o governo a fazer coisas boas pelas pessoas.
Se tivesse que transformar uma música sua em livro, qual seria?
Pensando em Todas Elas, seria “Eu Te Apoio em Sua Fé”. É um bom momento para essa música. Um contexto de intolerância, um radicalismo fascista e racista, um embranquecimento das religiões.
Qual artista é menos valorizado do que deveria? E não vale dizer Clara Nunes…
Pelo menos a Clara era muito amada pelo povo. Tem muitos outros que não chegaram nem perto. Existem cantores de músicas dadas como românticas no Brasil que têm um alcance enorme, eles representam o povo de muitas maneiras, inclusive na inocência, na pureza, e não são valorizados como deveriam. São muitos, muitos.
Odair José, por exemplo. Ele foi amado pelo povo, mas ele está, de repente, num lugar onde não é lembrado. Tem essa coisa do Brasil, que não cultiva a memória. Um país novo e sem memória. Aí quando a pessoa falece, você traz de volta. Isso é muito insano, muito injusto. Amado Batista e Diana eu também acho geniais.
Qual é o maior defeito do Brasil?
Eu não chamaria de defeito, mas diria que a escravização. E isso ainda vai torturar a gente por muitos anos. Uma herança muito maldita; muito sofrimento de famílias abandonadas. Minha avó, por exemplo, foi abandonada por meu avô que era negro e possivelmente não teve pai, porque esse pai já era escravizado, servia apenas para fazer filhos.
E as consequências são essas. As filhas, netas, e não sei quantas gerações mais, tentando quebrar esse padrão de não estar só, ou de tentar conquistar homens que nunca estarão ali. É sempre uma dor
E esse padrão é quebrável?
Todo padrão é quebrável, mas com muita dificuldade. Muita. É possível com bastante ajuda e perspicácia. Na música “Esperança”, eu canto sobre sair do padrão mesmo que ele tente escravizar a rotina. “Eu desarmo/eu transformo/eu insisto, eu me liberto”. E vou fazendo uma oração para quebrar essas situações.
A pobreza tem o seu padrão. E se uma pessoa da família não perceber, aquilo continua por muitas gerações. Você vê sociedades mais equilibradas, com muita miséria ainda, mas onde não há roubo e violência porque não existiu esse tipo de conduta desumana com as pessoas. Uma vez eu conversei com um taxista do Senegal e falei que o Brasil era lindo, mas sofre muito com a violência. Já fui assaltada 10 vezes. Ele parou o carro e disse que não acreditava. Contou que o país dele tem uma miséria gigantesca, mas as pessoas dormem com a porta de casa aberta, ninguém pega o que é do outro.
Não é uma única coisa, são várias. Meninas que viram as mães serem espancadas e vão continuar com namorados narcistas que vão agredi-las da mesma maneira. Meninos que não foram cuidados e vão bater nessas mulheres se vingando desse histórico. E tantos estupros, violências mascaradas que a gente só começou a falar a gora.
E qual é a maior qualidade do Brasil?
O povo é f*da, é sensacional. Eu fico sempre apaixonada, querendo levar gente para casa, adotar uma avó, ajudar não sei quem, fico desesperada. Vejo que é um povo de muito caráter. Porque a gente é sacaneado o tempo todo. Muita corrupção, muito jeitinho — no sentido baixo e precário da palavra. E isso nos leva para o buraco o tempo todo. Você sai de um buraco e cai em outro. É preciso ter uma mente muito saudável para não pirar. Estar sempre respirando e insistindo.